Da infinita paciência ao deslumbre

Que o José Veiga Freire era dado às artes, já eu o sabia há muito: desde os longínquos tempos em que juntos crescíamos para a vida, nos Seminários do Verbo Divino do Tortosendo e de Fátima. Por esses anos, porém, era à música que ele parecia mais fadado, manejando instrumentos vários, com perícia e à vontade. E, quando os não havia à mão, inventava-os, como hoje continua a fazer.

Que o Zé Freire amadureceria de visão aberta ao mundo, isso também era fácil de perceber. Ou não fossem os nossos mestres oriundos de paragens tão díspares como a Europa Central (Holanda, Alemanha, Eslováquia, Hungria, Polónia, etc.), o Brasil e, um que outro, de Portugal.

Pela vida fora, tanto ele como eu já a singrarmos bem longe da asa materna, que nos protegera na adolescência e juventude, fui ouvindo relatos esparsos, segundo os quais o Freire se dedicava a uma estranha e incomum arte e produzia obra com as ganas de um condenado ao sucesso. Até que, num belo dia em Oleiros, irá para dois ou três anos, percebi tudo. E fui, rapidamente, da revelação ao deslumbre.

Só nesse dia soube, ao franquear as portas do Hotel Sta. Margarida. onde nos congregávamos para mais uma vez brindarmos ao culto de antigas e duradoiras amizades, o que era isso do «azulejo alicatado». Essa era a tal estranha arte, a que o José Veiga Freire se vinha ultimamente dedicando a tempo inteiro. No átrio do hotel, havia toda uma panóplia de peças de arte expostas aos olhos de quem entrava. Belíssimas todas, disse-o então e repito-o, mas algumas a subirem a exigência de escala, com uma propensão cenográfica que impunha o deslumbre a quem as apreciava.

Os leigos como eu (diria mais: mesmo os perfeitos analfabetos na matéria) tiveram nessa altura a oportunidade de ouvir uma sapiente especialista em arte, e nesta do alicatado em especial, traçar uma linha geral sobre a exposição à vista, sobre o autor e os seus méritos e métodos. E convenceu-me, de argumentação técnica e artística em riste, do que eu já intuitivamente me apercebera, mesmo que sob a influência de uma antiga e fraternal amizade: o Freire é, de facto, um artista especial. 

Trata-se, basicamente, no labor do Zé, de pintar sem o uso de tintas e utilizando como ferramenta básica, em vez de pincéis, um alicate. Os materiais utilizados são pedacinhos de azulejos com as diversas cores e cambiantes, que o artista previamente imagina como alma corpo e forma da obra e que, depois, vai u-nindo com cimento-cola e, justamente, o tal alicate.

Nesse mesmo e belo dia em Oleiros também soube que o Freire estava prestes a terminar a recriação de uma obra de excepcional destaque na pintura portuguesa, os Painéis de S. Vicente de Fora, de Nuno Gonçalves (Séc. XV), a jóia da Coroa do Museu Nacional de Arte Antiga. Para dar volume e forma aos 60 personagens  originais de Nuno Gonçalves, o Zé Freire terá demorado cerca de um ano de infinda paciência e imenso trabalho. Mas valeu a pena.

Quando vi a peça, se dúvidas havia, elas esvaíram-se por inteiro, levando-me a concluir que o Zé Freire é um verdadeiro e fino artista e esta é a sua obra-prima. E, revendo-a vezes sem conta, só tenho que erguer o verbo para insistir: louvada seja a imensa paciência do autor, quanto mais não seja por ter exigido de mim que me elevasse ao infinito deslumbre.

 

Daniel Reis

Ex-jornalista do Jornal “ Expresso“

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